sábado, 19 de outubro de 2013

PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E O JULGAMENTO DO RÉU

5º PARTE (Do Artigo Científico " O Princípio Da Presunção De Inocência Como Garantia Processual Penal")

RAFAEL FERRARI



Analisando o espírito da norma constitucional em questão, podemos presumir que a execução da pena em desfavor do agente deverá ser em função da condenação definitiva. E sempre após um julgamento com base no devido processo legal.
Nabuco Filho (2010) ainda ressalta a atuação do princípio da presunção de inocência, consagrado no texto constitucional, como um mecanismo que coíbe a atuação de juízos apressados e precipitados.
Leonir Batisti em lição histórica exprime que em termos penais o que se viu em alguns momentos foi a manipulação do direito penal como um instrumento de perseguição, com prisões fundamentadas em boatos, condenações infundadas e baseadas em  oportunismo daqueles que manipulavam o poder. Ocorrendo tais fatos a par de um sistema de penas absurdamente fora do princípio da dignidade da pessoa humana (BATISTI, 2009).
Observe-se como, de forma expressa, o texto do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos expõe o instituto de presunção de inocência:

Art. 14.2 Qualquer pessoa acusada de uma infração penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida. (PIDCP, artigo 14.2)

Nabuco Filho (2010) demonstra que o princípio da presunção de inocência, consagrado na Constituição Federal, de modo simplificado, exige que alguém somente seja considerado culpado pela prática de uma infração penal após um processo onde tenha ocorrido um debate dialético. Donde a acusação demonstra a culpa do acusado e a defesa demonstra a fragilidades dos argumentos da acusação.
Assim, surge uma questão de grande valor e importância que diz respeito quanto a capacidade do ser humano em compreender o fato de poder afirmar a existência de uma verdade, sendo que a imperfeição humana pode levar a uma interpretação errônea da realidade. E tais erros conduzem à dissonância entre o juízo que se faz de um fato, e como este fato foi realmente praticado. Motivo este que levam a inúmeros erros judiciários com enorme repercussão, nos quais a sociedade tinha certeza de estar punindo o autor de um fato. No entanto, essas certezas causaram os maiores erros judiciários (NABUCO FILHO, 2010).
A forma bárbara como foi praticado o delito certamente choca toda a sociedade e causa o sentimento de uma justiça distorcida causando nas pessoas o sentimento de necessidade de impor uma pena ao infrator a ser aplicada de forma mais infame que o delito praticado por ele. Contudo, este não é o espírito do direito penal brasileiro que proíbe no texto constitucional penas cruéis ou de morte, salvo em situações de guerra, hipótese prevista para o uso da pena de morte.
Mesmo que o crime praticado seja considerado repugnante pela coletividade, este fato não implica que o acusado perderá seus direitos concedidos pela Constituição Federal. Todavia, o suspeito pela prática do crime poderá ser considerado inocente ao final da persecução penal. Não pode ser deixado de lado a hipótese de um erro judiciário. Ou seja, o réu pode ser condenado pela prática de uma infração penal que não cometeu (NABUCO FILHO, 2010).
Essa hipótese pode ser confirmada em inúmeros casos noticiados pela mídia. Imagine a quantidade de pessoas que foram condenadas pela prática de delitos que não cometeram e amargaram o gosto de uma condenação criminal somente porque o Estado quis mostrar sua força para a sociedade. E estas pessoas dilaceram a alma clamando por justiça (NABUCO FILHO, 2010).
Ainda conforme o raciocínio apresentado pode ser observado que não importa se o crime imputado ao réu é um estupro ou o mais repugnante dos homicídios. Todo acusado tem seu direito à defesa. Pois um autor de uma grave infração penal não perde seus direitos constitucionais. Mesmo que o crime seja grave, o acusado pode ser um inocente ( NABUCO FILHO, 2010).
Ainda complementa Nabuco Filho:

Não se pode esquecer que a história é pródiga em erros judiciários.
Dentre estes, pode ser lembrado o caso Juan Calas, que foi acusado de ter matado o próprio filho por enforcamento, em Tolouse, na França, no século XVII. Apesar de jurar inocência, foi condenado à pena de morte, com suplício na roda. A opinião pública exultou com sua execução, certa de que ali se fazia justiça. Contudo, após a sua morte, Voltaire, o filósofo do Iluminismo, assumiu sua defesa e demonstrou que o filho de Juan Calas se suicidara. Foi, então, Juan Calas absolvido e sua memória restabelecida.
Nesse, como em tantos outros casos semelhantes, a opinião pública esteve sempre ao lado do erro judiciário. E o advogado não parecia para a opinião pública outra coisa senão a exaltação do próprio crime.
Se esse foi um exemplo notório de um inocente condenado, não se pode perder de vista que existem inúmeros casos anônimos de erros judiciários, que jamais serão conhecidos do público. (NABUCO FILHO, 2010, p.94) 

Em análise ao ordenamento jurídico observa-se que o artigo 386 do Código de Processo Penal elenca hipóteses de absolvição do réu. E mais precisamente na parte final do inciso VI faz alusão ao princípio da inocência presumida, quando afirma que o juiz absolverá o réu se houver fundada dúvida sobre a existência do crime. E desta forma consagra este dispositivo constitucional quando presume a inocência do réu pelo motivo de existirem dúvidas sobre a existência da ação delituosa imputada ao mesmo.
Neste prisma leciona Nucci:

Outro ponto inédito, que, embora fosse desnecessário, não deixa de ser bem vindo, é a expressa menção quanto à dúvida: “se houver fundada dúvida quanto a sua existência”(parte final do inciso VII). Atendendo-se ao princípio da presunção de inocência, constitucionalmente previsto, outra não poderia ser a conclusão.  (NUCCI , 2009, p.688-689) 

Pode-se destacar a ampla utilização do princípio constitucional analisado no corpo de diplomas legais e entendimento de tribunais, quando do julgamento de práticas de infrações penais que garantem a aplicação da justiça em sua forma mais transparente e justa.
A presunção de inocência do acusado é um instituto largamente garantido nos países democráticos, e está previsto no artigo 11 da Declaração universal dos Direitos Humanos (1.948), dando um basta à tortura e às provas ilegais. Este fato assegura que o acusado não tratado como culpado ate sentença penal condenatória (D' URSO, 2011).
A manutenção do instituto da presunção de inocência preserva o equilíbrio que deve nortear a relação entre o Estado-juiz e o cidadão em uma relação processual, porque a culpabilidade ou a inocência do acusado será verificada por meio de provas durante a instrução processual (D' URSO, 2011).
Contudo, não se pode deixar de lado que os antecedentes do acusado podem ser usados para a fixação de sua pena quando da condenação. Podendo ser empregados como parâmetros os antecedentes, a conduta social, e a personalidade do agente dentre outros. Este comando normativo está previsto no artigo 59 do Código Penal e não poderá ser considerado afronta ao princípio em estudo. Veja um julgamento de habeas corpus pelo STF:

EMENTA: HABEAS-CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. INQUÉRITOS. ANTECEDENTES CRIMINAIS. EXASPERAÇÃO DA PENA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA INOCÊNCIA PRESUMIDA. 1. Folha criminal: existência de inquéritos e procedimentos por desacato e receptação. Maus antecedentes. Exasperação da pena. 2. Compreende-se no poder discricionário do juiz a avaliação, para efeito de exacerbação da pena, a existência de inquéritos sobre o mesmo fato imputado e outros procedimentos relativos a desacato e receptação, que caracterizem maus antecedentes. 3. Dentre as circunstâncias previstas na lei penal (CP, artigo 59) para a fixação da pena incluem-se aqueles pertinentes aos antecedentes criminais do agente, não se constituindo o seu aumento violação ao princípio da inocência presumida (CF, artigo 5º, LVII). Habeas-corpus indeferido.(STF. HC 81759 SP Relator Maurício Corrêa DJ 25/03/2002)

Ainda deve ser considerado que mesmo após o julgamento do réu, sua condenação não importará em presunção de sua culpabilidade antes de transitar em julgado a decisão. Estamos diante do já consagrado princípio do duplo grau de jurisdição, um dos garantidores do estado de inocência.
Como forma de garantir o estado de inocência daquele que recorre de uma sentença desfavorável pode-se observar o artigo 596 do Código de Processo Penal onde expressa o fato de a apelação da sentença absolutória não impedir que o réu seja posto imediatamente em liberdade. A colocação do réu em liberdade deverá ser  conforme previsão legal. Noutro giro, nota-se uma aparente falha no artigo antecedente ao dispositivo normativo citado. O artigo 595 do Código de Processo Penal menciona que se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta sua apelação. Isto é, o recurso não será conhecido para seu posteriormente ser provido pelo juízo ad quem.
Entretanto há de se destacar o fato de esse artigo não ser aplicável por força da súmula 347 do Superior Tribunal de Justiça. Pois seria uma afronta aos direitos constitucionais aceitar como fundamento da impossibilidade de julgamento do recurso interposto pelo réu o motivo de sua fuga. Conforme disposto na súmula em questão:

Súmula 347. O conhecimento de recurso de apelação do réu independe de sua prisão 

Todavia, poderá existir a necessidade de manter o réu preso aguardando o julgamento de seu recurso de apelação de uma sentença condenatória proferida pelo juízo competente. Obviamente essa prisão será fundamentada no ordenamento jurídico não contrariando princípios fundamentais previstos no texto constitucional, cuja legalidade da decisão já foi demonstrada neste estudo na abordagem sobre a questão da prisão preventiva face ao princípio da presunção de inocência. Neste sentido a súmula de número nove editada pelo Superior Tribunal de Justiça:

Súmula 9. A exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência.
  
Importante é lembrar que os recursos nasceram com o escopo de diminuírem, o quanto possível, a margem de erros oriundos do poder judiciário. Sendo garantido a revisão de tais decisões. Pois a justiça dos homens pode falhar, assim como o homem é falível (D' URSO, 2011).  

CONCLUSÃO

Vivemos em um Estado Democrático de Direito onde as garantias constitucionais são verdadeiras limitações constitucionais ao poder estatal. O poder público é regido por normas editadas e aprovadas pelo Poder Legislativo. Este, por sua vez, é eleito pelo povo, que os colocam como seus representantes através de seu exercício de cidadania: o voto. Esta situação fortalece a democracia onde o poder emana do povo que é exercido por meio de seus representantes.
Entretanto, esse poder deve ser delimitado pelos princípios elencados no texto constitucional. As normas devem obedecer a esses fundamentos. E, por sua vez, os órgãos responsáveis por decidir questões de conflito são obrigados a seguir tais princípios.  O exercício de uma justiça eficiente e eficaz depende do importante papel dos preceitos constitucionais distribuídos por todo o texto legal. Em especial o princípio da presunção de inocência, que garante o afastamento da existências de possíveis arbitrariedades do poder público em busca de uma reposta para a sociedade.
A aplicação do pensamento contido na hipótese de inocência do acusado pela prática de uma infração penal reduz a possibilidade do exercício de uma justiça leviana. O magistrado não pode deixar-se contaminar pela ignorância e princípios equivocados de justiça por vezes difundidos pela mídia e formadores da opinião pública. O Estado juiz deve ser técnico quando da análise de um fato para ser justo e aplicar a norma jurídica conforme seu espírito, e desta maneira expressar a vontade popular que foi positivada por meio de seus representantes.
O Estado é o legítimo possuidor do direito ao uso da força. Este poder deve ser utilizado em favor da sociedade, pois quando a força é praticada em desconforme com o justo ela torna-se violência. E, por sua vez, a violência é um ato ilícito, sendo prejudicial ao exercício do Estado Democrático de Direito.
A prisão de um suspeito deve ser realizada de acordo com a lei. A privação da liberdade não pode ser encarada como uma demonstração de poder, ou um arbítrio do poder público com objetivo de demonstrar sua força coercitiva. O direito à liberdade é também uma garantia constitucional. É um direito indisponível. Jamais pode ser admitido tal pena corporal para satisfazer a opinião pública e promover a imagem do poder estatal.
O princípio constitucional em estudo tem por escopo evitar a aplicação apressada e irresponsável da justiça. O homem tem o direito a vida, a liberdade, a existência de forma digna e a correta aplicação da justiça.
É uma das mais importantes garantias previstas na Constituição, onde o acusado pela prática de uma infração penal deixa de ser um simples componente de uma relação jurídica processual e torna-se um sujeito detentor de direitos e garantias. Deste princípio, vários outros surgem em favor do réu. Tais como o contraditório, a ampla defesa, o devido processo legal dentre outros.
O princípio em questão não afirma o fato de o culpado pela prática de uma infração penal ser inocente e não poder sofrer o julgamento através dos órgãos estatais. Este dispositivo constitucional apenas expressa o fato de que ninguém poderá ser considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Ou seja, depois de ser julgado através de um devido processo legal sendo asseguradas todas as garantias constitucionais. Ela é um remédio contra o arbítrio do Estado e a aplicação injusta da justiça.
A essência da justiça não é apoiar atitudes que desrespeitam os valores da dignidade da pessoa humana que por muitas vezes são perpetradas por nossos próprios semelhantes que buscam apenas seus objetivos em detrimento dos valores humanos. O direito existe para equilibrar as relações interpessoais e tornar agradável a vida de todos.


REFERÊNCIAS

______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 20 nov. 2011.

______. Decreto-lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal.

______. Decreto-lei nº 3.689 de 03 de outubro de 1941. Institui o Código de Processo Penal.

______. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: < http://www.stj.gov.br/>. Acesso em: 4 maio 2011.

______. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/>. Acesso em: 4 maio 2011.

BATISTI, Leonir. Presunção de Inocência. Apreciação dogmática e nos instrumentos internacionais e constituições do Brasil e Portugal. Curitiba: Juruá, 2009.

D'URSO, Luiz Flávio Borges. Pec dos recursos e presunção de inocência. Revista Jurídica Visão Jurídica, São Paulo, n.64, p. 25, set. 2011.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da língua portuguesa. 7. ed. Curitiba: Positivo, 2009.

NABUCO FILHO, José. Importância da presunção de inocência. Revista Jurídica Visão Jurídica, São Paulo, v. 01, n.54, p. 94-95, out. 2010.
 
JUS BRASIL. STF - HABEAS CORPUS: HC 81759 SP. Disponível em: < http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/775030/habeas-corpus-hc-81759-sp-stf>. Acesso em: 25 set 2011
 
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

ONU. Protocolo Facultativo relativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Disponível em: < http://www.cedin.com.br/site/pdf/legislacao/tratados/protocolo_facultativo_relativo_ao_pacto_internacional_sobre_os_direitos_civis_e_politicos.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2010.